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       Bato a vista no horizonte. Vejo a ida de Chico. Cara de derrota. Feição já cadavérica. O que será que acontecerá com ele? A seca poderá matá-lo. Que desgraçada. Estou perdendo os meus açudes e plantações, acho até difícil o juazeiro resistir.
        Terra almadiçoada, esquecida por Deus. Entretanto, Ele existe para os ricos. Deve achar que somos animais.
        Chico e sua família estão cada vez mais distantes, confundindo com miragens aguadas provocadas pelo forte calor na terra batida.
        Sinto mais pena de Josias. Espero que o infeliz consiga se salvar, pois a fome e a sede serão constantes, perguntas se alojaram em sua mente e vermes em sua barriga.
        Pergunto-me, às vezes, se era realmente necessário mandar Chico e família embora ao liberar o gado. Ele pelo menos recebeu a passagem de trem para ir aos campos de concentração, mas decidiu vendê-la e comprar um jumentinho com o dinheiro. Atitude que espero que não se arrependa.
        Sumiu por completo, mas sinto o cheiro da sua esperança e da sua fé. Que Deus surja e ilumine a todos dessa família, pois irão precisar.


Eduardo Mulato do Vale


         Fonte da Imagem  

            Vejo João Miguel a sofrer. Sofrimentos que trazem à tona o conflito interno por que ele passa. Monólogos, com certeza, são constantes. Apresenta um olhar intrigante, meio sofrido, meio misterioso. Não é um mistério comum, é como se fosse o infinito dentro de outro infinito. Complexo, não acha?
             Sou apenas o carcereiro do presídio onde João está. Paro alguns minutos e fico a visualizar seus conflitos. O que será que está passando pela sua cabeça agora? Será que pensa o quanto é injusta a justiça, que funciona bem para os ricos e de maneira eficiente e, quem sabe, tardia para os pobres?
             João Miguel ainda tem sorte de receber visitas de vez em quando. Há outros que foram esquecidos até por Deus. Esses, com certeza, estão arruinados. Injustiça dentro da justiça. É contraditório, mas é a realidade, nada de surrealismo nessa prisão.
            Continuo a ver João. Apresenta-se inquieto, inquestionável, sorrateiro. Desliza-se entre a loucura e a consciência. Infeliz. Preconceitos serão obtidos no fim de tudo, no fim de sua vida medíocre. Esse é um mal abstrato de um mundo concreto, onde os presidiários, com João Miguel, tendem a lutar contra a sociedade, que se baseia em um senso comum medíocre, e contra uma psicose oculta.
            Fico a esperar o quanto ele aguentará neste local. Junto à espera, há sempre uma resposta. Às vezes, não aceita por nós, mas correta.
            Quem me dera poder dar condições melhores a presos como João, que vivem entre paredes mofadas, de celas lotadas, com descasos políticos e sociais. Quem me dera que esse mundo se tornasse humano, e não racista.
            João acaba de reparar a minha presença ao seu lado. É melhor sair devagarzinho antes que o doutor Delegado me pegue fora do serviço.
           Com um olhar, dou meu “Até mais, grande João Miguel”.

                                                                                                                                                                                                                                                                            Eduardo Mulato do Vale





De joelhos aqui estou diante da cruz recém feita por mim. O desespero invade o meu coração. Transforma tudo que antes, para mim, era luz, em trevas. Uma cruz feita de dois paus amarrados e algumas pedras a sustentá-los será o eterno manto de meu filho, Josias?
Não morreu. Eu sei que ele não morreu. Está aqui, apertando meu coração, quase me levando a um infarto.
Essa rezadeira que não para de falar. Se ao menos trouxesse meu menino de volta.
Josias, por que você fez isso? Você não sabia que mandioca crua envenena a gente? Será melhor dessa forma? Será melhor do que ver você sofrendo?
Meu menino. Por que você me abandonou?
Seca desgraçada! Seca mortífera! Faz com que me sinta encarcerado em meus pensamentos. Que dor! Desperta, Josias!
Fome. Estou com muita fome. Olha lá a mandioca! Que vontade de comê-la. Não! Não seria isso que o menino iria querer. Será que ele está sentindo a minha falta? Sinto saudade, mesmo depois de algum tempo após a sua morte.
Onde está o senhor, São José? Onde estão tuas chuvas? Viu o que você fez com ele? A culpa é sua! Meu Senhor Jesus não iria querer essa desgraça.
Josias! Acorda, menino! Acorda... Por favor.
A mandioca desgraçada...
                           

                                                                                                        

                                                                             Eduardo Mulato do Vale